sábado, 16 de abril de 2011

A ESCRAVIDÃO NEGRA E EU


Uma das músicas que eu mais gosto de ouvir é uma canção norte-americana de fundo religioso, Amazing Grace. Ela é conhecida por todos os habitantes dos EUA e eu mesmo já a ouvi em muitos arranjos, inclusive numa emocionante interpretação no encerramento (ou foi na abertura ?) das Olimpíadas de Los Angeles.
Recentemente descobri que há no, You Tube, um vídeo maravilhoso com uma interpretação dessa música. Digo que o vídeo é maravilhoso porque ele traz, antes da música, muitas informações importantes, conectando coisas que eu sabia e acrescentando outras que eu desconhecia. A interpretação, transbordante de emoção, é de Wintley Phipps. E é ele quem, antes de cantar, ensina que os negro spirituals são músicas compostas apenas com as teclas pretas do piano; que Amazing Grace é também um negro spiritual, mas que sua letra foi escrita, vejam só, pelo comandante de um navio negreiro norte-americano ! O autor da melodia é desconhecido, mas Phipps não tem dúvida de que foi algum escravo, tal o tom de lamento que ela tem. Um lamento que ele sente vir da África Ocidental e que busca reproduzir quando a canta.
Não sei se vocês vão ter paciência para ler este texto até ao fim, por isso estão liberados para fazer uma pausa aqui e assistirem agora ao vídeo. Entrem no Google e digitem História do Hino Amazing Grace. Depois voltem aqui.
Na minha infância, como era de se esperar, meu interesse pela escravidão negra foi praticamente nenhum e ligado apenas a alguns fatos isolados. Aprendi que a libertação dos escravos se deu num dia 13 de maio, coisa para mim fácil de lembrar porque eu nasci nesse dia.
Por essa coincidência, eu ouvia, quando criança, que meu pai chegou a pensar em me dar o nome de Negro. Mas, falou mais alto o bom senso, e ele viu que Negro Branco não seria um nome fácil de carregar pela vida a fora (se bem que eu tinha, naqueles tempos, um colega chamado Lírio Natalino, que me parecia conviver muito bem com seu poético nome). Meu pai conhecia vários desses nomes esdrúxulos e não acredito que tenha pensando seriamente em pôr um Negro Branco na família. Deve ter sido tudo só uma brincadeira dele.
Lá pela 4ª ou 5ª séria do curso primário, tive uma colega mulata, chamada Sueli. Nunca me esqueci dela e uma das razões para isso é que ela também aniversariava no dia 13 de maio. Outra razão para lembrar da Sueli foi o fato de ela, alguns anos depois, ter sido escolhida a primeira (e única, pelo que eu sei) Miss Mulata de Lagoa Vermelha, cidade em que nasci.
Os anos passaram, aprendi o que foi a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários, mas só. Meus conhecimentos sobre a escravidão negra não foram muito além disso.
Lá por 1990, fazendo pesquisa genealógica no Arquivo Público do Estado, deparei-me, em um dos Livros de Notas de Lagoa Vermelha, uma Carta de Liberdade Condicional. Intrigado, fui ler o documento para saber de que se tratava e constatei que era uma declaração pelo qual um dono de escravos dava liberdade a um dos seus cativos, com a condição de que ele continuasse a lhe prestar serviços gratuitos por certo número de anos. Achei aquilo curioso, mas deixei de lado e fui adiante na minha pesquisa.
Para minha surpresa, verifiquei logo que a seguir muitas outras cartas como aquela foram assinadas perante o tabelião naquele ano (era 1884, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea). Isso me obrigou a aprofundar-me no assunto, fugindo do meu objetivo inicial, que era a Genealogia. Eu precisava entender aquele fenômeno.
Para encurtar a história, aprendi em algumas semanas muito mais sobre a escravidão negra no Brasil do que em todos os meus 43 anos vividos até ali. Descobri, por exemplo, que a Lei do Ventre Livre e a Lei os Sexagenárias não trouxeram aos escravos os benefícios que se imagina.
Tudo o que os historiadores de Lagoa Vermelha haviam publicado sobre esse assunto até então eram esparsos causos de escravos, praticamente só fatos curiosos, e não registros de importância para a história do município. Com minha pesquisa, tive a gratificante oportunidade de resgatar e publicar muitíssimo mais que isso: foram 160 nomes de escravos, com sexo, idade e estado civil, além dos nomes dos respectivos proprietários. Obtive também algumas informações sobre o movimento abolicionista em Lagoa Vermelha e sobre perseguições a escravos fugidos. Alguns anos depois, a pedido da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Vacaria, publiquei resultados de pesquisa idêntica sobre aquele município, vizinho de Lagoa Vermelha, traçando também um paralelo entre os dois com relação ao emprego da mão-de-obra escrava.
Desde então, o interesse pela escravidão negra não mais me abandonou. Em 1994, a convite da historiadora Profa. Véra Lucia Maciel Barroso, pesquisei e publiquei artigo sobre a presença africana na região nordeste do Rio Grande do Sul, mais precisamente nos municípios que se desmembraram de Santo Antônio da Patrulha, chamados pelo historiador Ruy Ruben Ruschel de Quadrante Histórico Patrulhense.
Nessas pesquisas e leituras, fui sendo tomado por um forte sentimento de empatia pela causa dos escravos. A doutrina espírita kardecista explica tantas coisas que, sem ela e sem a crença na reencarnação a vida na terra é, para mim, totalmente injusta e sem sentido. E é a reencarnação que me ajuda a entender essa empatia pela luta e pelo sofrimento dos escravos trazidos para o Brasil. Sinto de modo muito forte que não fui negro, não fui escravo africano nem proprietário de escravos, mas que, de alguma forma vivi bem aquela realidade. Talvez eu tenha sido um padre que viveu aqueles tempos, mas que muito pouco podia fazer contra um regime tão tremendamente desumano (aliás, este é apenas um de vários indícios que me fazem crer que fui padre em outra vida).
Voltando à música negra, tenho dela vagos conhecimentos: sei algo sobre o jazz e só vim a saber o que era de fato o blues no ano passado quando passei uns dias na Argélia. Lá aprendi que esse ritmo foi trazido para a América pelos negros do norte da África. Afora isso, desde minha adolescência ouvia falar em negro spirituals, sem saber muito bem o que o caracterizava, até assistir à “aula” no vídeo de Wintley Phipps. Das poucas composições desse gênero que conheço, acho algumas bem bonitas (olha o ex-padre falando...).
Bem, se você ainda não assistiu ao vídeo que citei lá no início, faça isso agora. Se já assistiu, assista de novo. Vale a pena vê-lo duas, três, muitas vezes.